sábado, abril 09, 2005

Contato com o subterrâneo

Ontem os "Morlocks"* vieram até mim. Na verdade, um só. Primeiro o tom alto da sua voz não me despertou a atenção. Depois ele se fez notar ao me mostrar o trezoitão que lhe dava o comando da situação. Aí sim ouvi o que ele já tinha repetido umas duas vezes: "passa a carteira, RÁPIDO, senão te meto bala!"

Olhei primeiro a arma, um revolver novinho que o bicho mais mostrava que apontava. Depois olhei o sujeito. Bem vestido, cabelo bem cortado... parecia até um "Eloy"*. Só a cara de mau lembrava que a figura tinha vindo das profundezas.

E ele gritou de novo, percebendo a falta de cooperação da minha parte. Minha amiga que tinha almoçado comigo e me acompanhado ao banco para eu depositar meu pagamento, ainda não tinha percebido o que rolava. "Anda, Carlos, tá esperando o que?" Nessa o Morlock mostrou a ela o motivo e mandou-lhe entregar a bolsa.

Nada mais a fazer. Agir rápido e o menos pateticamente possível. Mas o sangue é mais forte. Primeiro a reação patética em busca de simpatia do cara: "Mas tu vai me levar todos os documentos?" Que besteira! É claro, né? Depois veio a pirraça atávica, a inconseqüência que tantos males já me causou. Na hora de entregar minha carteira, fiz que ia entregar e atirei longe, na calçada.

"Porque isso?", fiquei pensando horas a fio depois. Ah! Foda-se! O cara "nem" me deu um tiro! Se nem um pente inteiro de 9mm conseguiu me atingir, porque esse mané ia me fazer mal? Esse diabo desgraçado sentado no meu ombro esquerdo vive me metendo nessas... Não foi dessa vez que ele acabou comigo.

Depois que o cara correu, ainda tive a reação de tentar ver para onde ele foi, onde era a entrada da sua caverna, mas o anjo no outro ombro me mandou dar uns passos na direção contrária e tratar das coisas práticas. Ligar para 190, acalmar a moça, avisar o segurança do meu trabalho para ficar de olho no carro dela (os documentos e a chave estavam na bolsa dela) e ir à DP.

À essa altura, o diabinho de monocelha grossa já estava sob controle. Calmamente, aguardei minha vez de cumprir o ritual inútil de denunciar a incursão do submundo à superfície. Aliás, a DP é o portal onde nós, inocentes Eloys, entramos em contato de vez em quando com os Morlocks. Alguns deles, cabisbaixos e amarrotados, passavam algemados. Outros, de farda, passavam e me encaravam. Outro, com a máquina fotográfica e o crachá do jornal, zanzava com a repórter, que eu não sei de que lado da superfície vinha. Era bonitinha, mas podia ser outra daquelas criaturas.

O escrivão era dos nossos, com certeza. Sujeito bem educado e atencioso. No box ao lado, vejo pela primeira vez 30g de pasta de cocaína vindas diretamente dos subterrâneos onde pululam os Morlocks. Descrevemos a ocorrência, que foi anotada sem muita precisão, enquanto folheávamos o álbum de suspeitos. Os Morlocks são feios mesmo! Mas alguns até podem se passar por Eloys. Listamos nossos prejuízos, o meu muito menor que o dela, porque
mulher leva a vida na bolsa. Nem meu celular aquele imbecil levou.

42 anos e é a primeira vez que um deles me ataca pessoalmente. Nada
traumático, porque um dia tinha que acontecer. Eu andei muitos anos
arriscando-me na fronteira entre nós e eles eventualmente. Mais recentemente me protegi na minha casa, me afastei dos pontos que "eles" freqüentam e me tornei relapso. Eles ficaram mais folgados nesse período.

Pois então, a vida segue aqui na superfície e os Morlocks ficam aguardando a próxima oportunidade de subir e nos atacar. O problema é que eles estão cada dia mais à vontade à luz do dia.

* (A Máquina do Tempo, H. G. Wells)